Nem que eu quisesse podia entrar na casa da minha avó pela janela. A bem da verdade, sempre faltaram-me pernas para isso e uma repreensão silenciosa da minha mãe fazia com que eu rapidamente entendesse que era bom que ali eu suspendesse as molecagens. Estávamos indo na casa da vó e era bom para a minha saúde que eu me comportasse. Tivesse modos, como ela dizia.
Ao invés disso, eu deveria percorrer passo a passo os corredores do prédio de poucos andares até chegar, quase ao fundo do corredor, à porta que separava o mundo da cidade daquele mundo privado onde viviam meus avós e sempre tinha alguém de passagem ou visita.
A casa da minha avó sempre foi uma casa de visitas e, a despeito da sala espaçosa, nós, seus familiares, preferíamos ficar no quarto do casal. Lá, eu tinha a impressão (ou certeza) de que era um lugar onde o frio jamais poderia entrar. Era como se a temperatura ideal fosse combinada previamente com alguma divindade meteorológica que mantinha a salvo do vento Minuano o ambiente que mais frequentávamos no apartamento de frente ensolarada onde eles viveram enquanto viveu o meu avô.
Depois de sua morte, a vó veio viver em Porto Alegre e o apartamento em que veio para morar com uma tia logo adquiriu aquela mesma propriedade térmica: nunca frio demais, nunca exageradamente quente. A verdade é que aquela condição partia dela mesma. Embora não fosse pessoa espalhafatosamente calorosa, a vó tinha uma energia e vitalidade realmente impressionantes. E essa vitalidade contagiava o ambiente.
De repente, do nada sinto uma saudade absurda de ser conduzido à casa da vó para visitar alguma tia que estivesse de passagem na cidade – o que significava também a oportunidade de reencontrar primos que moravam longe e via muito esporadicamente. Criança, no entanto, não me permitiam que fosse muito longe e desse modo eu ficava mesmo era “ao pé” da mãe, como um bezerro em cria, ouvindo a conversa dos adultos enquanto o solzinho cozinhava vagarosamente o ambiente ensolarado do quarto da vó sob o olhar econômico e silencioso do meu avô.
Às vezes, mandavam-me à padaria comprar alguma bolachinha (em algum outro lugar do mundo se diz “bolachinha”?) ou alguma coisa na mercearia da esquina. Naquelas tardes intermináveis em que o futebol da rua havia sido suspenso por liminar materna e, claro, sem celular nem wi-fi, tudo o que havia para fazer era ficar sabendo da vida social (às vezes particular) por comentários aleatórios que elas faziam enquanto tomavam o chimarrão com florzinha de macela e espocavam a crocância das bolachinhas que eu havia buscado. É ridículo falar em internet naquela época, mas assim quero dizer que estávamos sempre presentes no próprio corpo, algo que hoje é sempre duvidoso nas pessoas.
Quando a gente é levado pela mãe, entende que há uma hora que não há retorno possível para a vida normal e planejada. É como se a gente fosse guardado na bolsa dela e submetido à sua condução inclemente e suplícios tais como dar só uma passadinha “ali” e conversar um pouquinho só com não sei quem mais. É condição inescapável e indiscutível. Parece que a liberdade recém avistada na infância foi suspensa por uma autoridade intransponível e irrecorrível: autoridade de mãe.
Às vezes sinto uma saudade absurda (e contraditória) de quando a minha mãe pegava de minha mão e levava-me consigo para ir não sei aonde e depois passar o resto da tarde na vó. Íamos a pé, atravessando as ruas friorentas de Bagé, tão familiarmente estranhas agora.
Então é nostalgia que chama? Pode ser, mas eu penso então que essa nostalgia é das perdas de tempo mais interessantes que existem, porque ela permite justamente que se salve da passagem do tempo alguma coisa que não seja a escravidão momentânea, permanente, da atenção no que aparentemente vai se desfazendo sem parar e, principalmente, do que já parece irremediavelmente perdido.
Do que eu comento é outra coisa. É como um efeito vítreo que a luz solar deposita em tudo e que depois não se descola mais. Adere indefinidamente às coisas justamente por esse caráter indefinido e consolida-se, realmente, é na memória de cada um e de modo totalmente particular. Pode ser qualquer coisa e, na verdade, qualquer um pode evocar quando viu pela última vez essa película acomodando-se em lugares, cenas e imagens que, incrível, não são instagramáveis. Essa luminosidade está nas coisas, objetivamente, mas, subjetivamente, em quem as observa.
Nesses dias não é que eu quisesse melancolicamente estar onde seria impossível voltar a estar, mas como evitar me sentir eventualmente como se por um momento estivesse?